segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Ela é o livro



“Barthes está errado. O autor não morreu e não morrerá nunca. O livro não é escrito por um fantasma, mas por um ser de carne e osso, fruto de sua vida pessoal, de um momento histórico definitivo”, defende a professora dra da UFSC que tem 22 livros publicados, cinco lançados ontem em Pato Branco



Daiana Pasquim

Pato Branco



Alma feroz. Para mim, Salma Ferraz sempre soou assim. Feroz não no sentido de selvagem, mas de extraordinário. Assim como aquele que apresentou a Língua Portuguesa ao mundo, Saramago, detém o “mago” e inventou a escrita “saramágica”, Salma descreve a “alma” e evidencia na literatura tudo que diz respeito a Deus e ao diabo. A mãe de minha professora do curso de Letras e Literaturas em Língua Portuguesa sabia o que estava fazendo quando lhe batizou, lá em Ibaiti, no norte velho do Paraná, ao lado de um pico, o chamado Pico Agudo que pertenceu à sua própria família no passado. Salma Ferraz nasceu há exato meio século ao pé do Pico Agudo, um lugar habitado por muitos fantasmas... pode ser daí que vem esse misticismo que rodeia sua imagem tão cintilante.

A primeira vez que a vi, foi numa aula por videoconferência e pensei: ela é uma bruxa. Toda de vermelho, dos pés a cabeça, porque o chapéu lhe é um elemento composto ao corpo quase como as mãos, logo acima dos cachos dourados que formam o invólucro para seu cérebro brilhante. Mãos essas que escrevem tão avidamente. Salma é autora de 17 livros de crítica literária e cinco de ficção. Nesta sexta-feira (10), trouxe três de crítica e dois de contos a Pato Branco, e os lançou na Galeria de Artes Maria Genoveva, concedendo muitos autógrafos. Mas ela não se envaidece. “Acho que nós [críticos literários] não somos tão importantes assim”, disse, apenas na segunda vez que repeti a pergunta.

A li principalmente durante as disciplinas de Literatura Portuguesa I e Estudos Literários III. Além de apenas dois, de seus 22 livros. Muito pouco ainda. Quero mais linhas. Quando a vi pessoalmente pela primeira vez tive um estalo: Salma tem um texto só. Ela é o livro, dentro de inúmeros intertextos. A vida de Salma é a literatura, a literatura é ela mesma.

Ao cultivar esse fascínio pela autora/professora/bruxa das palavras, guardava a vontade de fazer com ela essa entrevista perfil. E essas revelações que você lerá a seguir foram fruto de trocas de muitos e-mails, porque Salma reside em Florianópolis (SC), onde está a sede de minha universidade, a Federal de Santa Catarina (UFSC). Lá aonde as águas têm cristais, ela respira a inspiração de seu trabalho, também porque “existem sim bruxas na Ilha da Magia”, afirma Salma.

Mas antes de começarmos o pingue-pongue, é necessário passar mais duas informações: Salma Ferraz é a patronesse de nossa turma “17 guerreiras e um herói”, que receberá a outorga de grau a partir das 18h deste sábado (11) no Teatro Municipal Naura Rigon; e ela é perita em José Saramago, que ao morrer em 2010, teve de Salma um artigo publicado na revista Ler & Cia (Ed. 33), “O ano da morte de José Saramago – em 18 de julho de 2010, ninguém morreu”, aonde mencionava justamente que ao concluir o “Dicionário de Personagens”, cujo lançamento trouxe ao Sudoeste, o seu mestre morreu. Fazia dez anos que eles se conheciam pessoalmente. Ela o lê. Ele também a leu. Já dividiram taxi, tomaram café de duas horas e meia no hotel... hoje Salma mantém contato com a esposa do escritor português (foto).

Doutora em Literatura Portuguesa, ela é professora associada de Literatura Portuguesa da UFSC há exatos 17 anos, na qual dirige o Núcleo de estudos comparados entre Teologia e Literatura (Nutel), além de atuar na pós-graduação de Literatura com a linha de pesquisa “Teopoética - Os Estudos Comparados entre Teologia e Literatura”; e é membro da Associação Latino-Americana de Literatura e Teologia (Alalite), da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic) e da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa (Abraplip). “Foi um longo percurso. Daria um livro por si só. O que posso te dizer é que sou persistente, não desisto nunca de meus objetivos”.

O currículo resumido é grandioso, mas neste texto, com todo o respeito e admiração, a chamo de “você”, isso porque quando se leva um autor para a sua cabeceira, ele vira o seu íntimo. E sim, o autor está mais vivo do que nunca, numa contestação que juntas fazemos a Barthes e, se você chegar ao fim desta leitura, vai compreender:



Você leu Saramago muito profundamente e escreveu As Faces de Deus na Obra de um Ateu e fez o dicionário sobre os personagens dele. Sua relação com Saramago era de intensa troca?

A obra de Saramago sempre terá influência em minha ficção, uso epígrafes dele, citações. Minha relação com Saramago era de admiração, de discípula para o mestre. Eu o conheci quando ele recebeu o Doutoramento da Universidade Federal Fluminense no ano 2000. Eu o presentei com meu livro O Quinto Evangelista, ele ficou me olhando e comentou: "pensei que a senhorinha fosse mais velha". Naquela época eu era jovem.... Ficamos no mesmo hotel e no outro dia decidi não ir ao evento naquela manhã, pois estava muito cansada. Ocorre que Saramago também pensou o mesmo. E acredite quem apareceu para tomar café no refeitório vazio: ele! Conversamos umas duas horas e eu, que faço regime, comi tudo que podia para acompanhá-lo. Agora tenho trocado ideias com Pilar del Río sobre projetos na Fundação Saramago.



Você é uma grande escritora e uma professora amada... e quais eram seus sonhos de menina? Ser educadora sempre foi uma intenção?

Não, quando criança pensava em ser médica. Mas era de uma família muito humilde. Como gostava muito de ler, a literatura foi o caminho que escolhi. E creio que não seria uma boa médica. Detesto sangue e pessoas abertas...



Confesso que as primeiras impressões suas que tive foram: “ela é tão radiante, personalidade forte, presença marcante, parece até uma bruxa”. As bruxas existem aonde?

Existem. Principalmente aqui na Ilha da Magia. As bruxas, as que eram queimadas na Idade Média como tal, não eram bruxas, eram mulheres que detinham um conhecimento acima do normal, que conseguiam ver além dos outros. Só que este dom é dom dolorido. Quem consegue ver além da massa, sofre muito.



Nos conte um pouco sobre sua rotina diária de pesquisa, estudos, produção, criação de aulas?
Eu leio muito. Em torno de três a quatro horas por dias. Outra coisa: durmo muito. Oito horas por noite e mais uma hora e meia após o almoço. Quanto mais se dorme, mas se produz. Um cérebro descansado é uma máquina de fazer pensamento. À tarde costumo me dedicar às revistas e aos jornais, pela manhã estudo o que é mais pesado, os livros. A criação literária fica para fins de semana e final do ano. À noite vou à academia, pois sou muito agitada. Agora resolvi cursar Teologia...



Com mais de 20 obras publicadas, como consegue estabelecer uma produção tão intensa? Sua vida é só trabalho? Ou o trabalho é a sua vida?

Sim, foram 5 livros que saíram este ano. Como te disse minha produção depende da cama. Quanto mais durmo, mais produzo. Não sou autor de virar madrugadas lendo. Meu cérebro funciona diurnamente. Devo muito da minha produção ao energético Centrum. Sem ele não seria ninguém. Acho que vou virar garota propaganda do produto. O trabalho é minha vida. Digo sempre que por enquanto só temos esta vida, da outra ninguém voltou. Então temos que tirar o atraso e produzir muito. Não tenho tempo para futilidades. Só faço unha e cabelo quando a coisa tá feia mesma. E só vou ao salão na segunda de manhã, quando não tem ninguém. A burrice me dá coceira...



Literata especializada em Teopoética, o que mais te inspira a escrever e a publicar livros?

Divulgar o pouco que sei, sintetizar o pensamento de outros estudiosos e divulgá-los. São poucas as mentes brilhantes que fazem a história. Encanta-me conhecê-las. Gostaria de viver umas dez vidas de 90 anos para poder dar conta de ler tudo o que quero: Teologia, Literatura, Filosofia, etc, etc.



Em sua mais nova obra: “As malasartes de Lúcifer”, - o qual li a introdução de forma honrada ainda no prelo por sua gentileza em me enviar por e-mail no último dezembro- pressuponho dedicar-se a construir quase uma “redenção” ao diabo. A que atribui o fascínio e medo que as pessoas têm para com essa figura “divina”?

As pessoas tem medo, mas não do Diabo. No fundo, elas sabem que o Diabo é a apenas a exteriorização do seu próprio eu. O ser humano dispensa o Diabo, pois sabe fazer coisas que o Diabo jamais faria. É muito mais fácil atribuir as desgraças e fracassos a Deus ou ao Diabo com frases tipo “Deus quis assim”, ou “ tava endominhado”, do que pegar as rédeas da sua vida em suas mãos e dizer: acertei, errei, sou o responsável. É como se o ser humano precisasse ser tutelado pela Igreja, pelo Estado, por Deus e pelo Diabo. Um ser estúpido que não sabe o que faz e precisa jogas suas decisões nas costas de alguém.



Você já chamada pela mídia para explicar as mais intrigantes historias que mexeram com a sociedade, como a polêmica de “O Código Da Vinci”, quando foi ao Jô Soares. Como você se sente com tudo isso?

Orgulhosa, por ver que meus estudos estão sendo reconhecidos. E humilde e triste porque me falta ler muito ainda.



Afinal, Maria Madalena foi ou não a mulher de Jesus?
Não foi. E se tivesse sido não haveria escândalo algum. Escândalo na cultura judaica era ser solteiro. Não foi, porque pelos relatos dos evangelistas, a vida de Jesus foi muito curta e ele não teve tempo para isto. Se tivesse sido casado, os evangelistas relataiam isto com a mior tranquilidade. Madalena não foi a adúltera, não foi a mulher pecadora que ungiu os pés de Jesus com óleo santo, nem tão pouco, a irmã de Marta e irmã de Lázaro. Madalena não tinha pertença, não pertencia a ninguém, era livre e, principalmente, a Discípula amada, a primeira testemunha da ressurreição. Como pode a Igreja Católica ainda não ordenar as mulheres diante de um fato contundente destes?



Como sua aluna, a impressão que me passa é a de que tanto conversando com vc, assistindo às suas aulas, quanto lendo suas obras, a gente “te lê”, o tempo todo. “Vc é o livro”, ambulante como seu livro Ateu. Como você recebe essa impressão?
O interessante é que já apontaram isto. Tem uma aluna na Universidade Estadual de Maringá que está fazendo um mestrado sobre minha obra literária. Ela veio até mim comprar um livro num lançamento, mas conversou um minuto e saiu correndo. Disse que não queria me conhecer. Como ela está estudando minha obra, fazendo uma dissertação. Ela está certa, tem que se manter longe do objeto de pesquisa. Porque quem me conhece quando lê meus contos, parece que está me ouvindo falar. Talvez porque eu aproveite muitas das estórias da minha vida para utilizar na ficcão. Embora o que está no papel seja diferente da estória que a motivou, porque se trata de ficção e de personagens de papel, parece que eu sou o livro. Outra coisa: eu cito muito as obras que trabalho na crítica na minha ficção.



Quais são os melhores escritores de todos os tempos?

Difícil, muito difícil. Há grandes obras e grandes autores (alguns desconhecidos) e qualquer lista é excludente, subjetiva e, por isto, inválida. Mas, correndo o risco de errar, creio que nenhum estudante poderia se formar sem ter lido: 1) A Divina Comédia, 2) Dom Quixote em 3) a Bíblia, porque é a base da civilização ocidental.



Aprendemos na licenciatura em Letras e Literaturas sobre a morte do autor. Quem leu a dedicatória de seu “O ateu ambulante (2011)”, e o conto homônimo, percebe que os “Ricardos” tendem a ser a mesma pessoa, seu tio. Contei-lhe numa mensagem online logo após ler a obra, de que ficava difícil matar o autor diante da riqueza de detalhes narradas em 1ª pessoa. Vc era a sobrinha. Como Barthes leria seu primeiro capítulo?

Não, Barthes está errado. O autor não morreu e não morrerá nunca. O livro não é escrito por um fantasma, mas por um ser de carne e osso, fruto de sua vida pessoal, de um momento histórico definitivo. Flaubert usou a expressão "Emma Bovary c'est moi". Saramago, e isto eu coloco na Introdução do meu Dicionário de Personagens da Obra de José Saramago, que lançarei nesta sexta também era contra o conceito de Barthes, ao afirmar que ele era Blimunda, Baltasar, Madalena, Jesus e o Diabo. Também digo que sou Ricardo do Ateu Ambulante, sou a Filha de O Capote de A Ceia dos Mortos, como sou a mulher que odeia as Bundas sem cérebro em Efeito Melancia de Nem Sempre Amar é tudo.



Como devemos “conversar” com as teorias literárias para que nos tornem pessoas melhores?
Antes das teorias, vc deve ler o livro. O livro do autor sempre será superior a qualquer teoria. A teoria ilumina o livro, nunca o contrário! Diante da opção única, o livro, o crítico, fique com o livro.



Ao concluir a entrevista, tive a redenção. Também sempre achei que o Barthes estivesse errado. Estudamos isso em três cadeiras. O artigo sempre voltava... Ter essa afirmação de Salma foi uma libertação. O autor está mais vivo do que nunca. E Saramago também concordaria.