quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

REPORTAGEM-CONTO: "O capítulo 2 da Vida de José"



Convivendo com o HIV: por trás da porta há muito mais do que nossa vã imaginação pode alcançar. Essa entrevista nos leva a refletir sobre os mistérios do organismo e de nossa capacidade mental também

Não foi ontem que o conhecemos. Foi nessa mesma época do ano passado, quando estampamos na capa do Saúde sua foto com a manchete “HIV Soropositivo e saudável”, em 2 de dezembro de 2011. Por isso vamos chamar essa edição de “Capítulo 2 da Vida de José”. Mesmo abraçando o HIV desde o primeiro momento, contou pra família, para o pessoal do prédio, para as pessoas da rua, deu entrevistas à mídia, José também encara de frente os preconceitos e não tem medo nem de ficar doente, tampouco de morrer.
Marcamos uma nova conversa para a manhã desta terça-feira (27), pois gostaria de saber o que mudou na vida de um soropositivo para HIV durante um ano, após sair na capa deste caderno.
Com a mochila nas costas e a máquina fotográfica a tiracolo às 9h30 da manhã ensolarada, devo confessar me ver numa cena de filme de suspense ao entrar livremente pelo Palácio dos Arcos e pegar o elevador até o 3º andar, dar de cara com um corredor escuro cujos sensores demoraram em me reconhecer. Quando localizei a porta 309, bati. Ouço passos e José abre a porta, só de bermuda. O impacto da falta da camisa se dissipou como num sopro ao dar o primeiro passo para o apartamento e encontrar dois idosos, um em cada sofá, fazendo o “L” da sala, assistindo a um canal religioso. Dei bom dia aos seus pais apertando as mãos e fitando olhares de quem busca entender o que estava acontecendo, enquanto José avançou para a mesa e puxou uma cadeira para mim, sentando-se ao lado. Tirei da mochila o notebook e fui tentando quebrar o gelo, acomodando o computador em frente a uma bíblia e um vaso de flores alaranjadas, dividindo espaço ainda com uma caixa de luvas descartáveis, alguns papéis, Mimi - o gato que adorou o PC e ficou adornando-o enquanto conversávamos. José passou a mão num vidrinho e passou a me explicar que tinha recebido na semana passada essas gotinhas homeopáticas de um frei capuchinho que conversou em Curitiba, durante um congresso. “Aqui diz para tomar cinco gotas, mas ele me falou para tomar 15. Eu disse: vou ficar forte como um touro”, riu.

Quem é José?
Dono de um passado repleto de adrenalina, ex-estudante de Jornalismo e de Letras, ex-militante do PC do B, José Leoclécio Almeida, 56 acumula na bagagem viagens ao ter percorrido todas as capitais (com exceção de Roraima) e muitas cidades brasileiras. Conheceu gente de todo tipo e há alguns anos voltou a Pato Branco, para descobrir doenças que mudaram seu percurso de vida.
Doador de sangue, foi num desses gestos de voluntariado que os exames acusaram hepatite C e o vírus HIV positivo. Para curar a primeira, ele tomou por seis meses injeções que custaram R$ 1.515 e mais quatros comprimidos de manhã, a tarde e a noite. Já a segunda, faz parte de um programa diário de combate munido de qualidade de vida, que inclui caminhadas, noites bem dormidas, nada de álcool ou exageros, refeições regradas e nas horas certas. Ser cuidador de idosos marca a rotina - a começar pelos pais Gitana Teixeira de Almeida, 76 e Olmiro Rodrigues de Almeida, 82, ela com Alzheimer, ele com Diabetes. E José, soropositivo, cuida deles o tempo todo. A informação mais importante: ele não tem a Aids manifestada, apenas é portador do vírus. Por isso, ainda não toma coquetel algum de medicamentos.

Em busca da vida saudável
No mesmo dia, José descobriu o HIV e a hepatite, com o fígado já 40% deteriorado. “Fiz o tratamento bem certinho, eu bebia um pouco, mas o dr.Volpato me falou para ir na psicóloga, fazer fisioterapia, não andar com quem bebe, nem ir em festas ou formaturas, para após seis meses ele me dar o medicamento. Eu disse: sua obrigação é me dar o medicamento, meu dever eu sei. A partir do momento em que eu tomar o primeiro medicamento eu não uso mais álcool e tudo. É só dizer não e obrigado e acabou. Vou a formaturas, ando com quem carrega pinga junto, vou aos bares, em todo e qualquer lugar. No inicio é ruim não tanto pela falta que te faz, mas pela insistência das pessoas que te conhecem: senta aqui, toma uma que te pago, e ficam insistindo. Daí tem que que dizer, “não bebo mais, obrigado e pronto”, afirmou incisivamente.
Para conservar a saúde, José pratica exercício físico todos os dias, até quando chove, começa às 6h da manhã pelas ruas, de trevo a trevo. E depois, próximo de casa, na academia ao ar livre, atrás da prefeitura. “Acho engraçado, estou descendo no elevador e vêm as mulheres com os saltos altos, quando vê que está chovendo já reclamam. Eu ponho uma bermuda e ao invés de por um tênis melhor para não molhar, coloco chinelo de dedo e vou brincando como criança. São pessoas que não se aceitam: quando chove, reclamam porque chove, frio porque está frio, calor, porque tá calor. Fique um mês no semiárido do Nordeste, caminhe uns 15km com uma lata de água e você já vai gostar de chuva”, aconselha conscientemente.

Estudante, não errante
Nas andanças por estudo e militância, ele começou por Palmas no curso de Letras que fez por um período só. Depois, por causa do jornalismo, passou pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) de Cuiabá, por Porto velho, pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Curitiba, entre outras que não se lembra. Tudo isso para dizer que José galga os mesmos sonhos que todos nós, dia a dia. “Não conclui nenhum curso, sinto só economicamente, onde vejo o problema, senão não, porque estudar, eu continuo estudando. Ler, continuo lendo. Sou meio cego de tanto ler, uso num olho grau cinco e no outro quase seis. De seis em seis meses vou ao oftalmologista e tenho que trocar o grau do óculos”, confessa.
Ele é muito bem informado. Pelo argumento de autoridade de sua própria vida, José aprecia ler textos científicos. Assim ele consegue explicar todas as transformações que o HIV pode fazer ao organismo, consegue se preparar se for ficar doente, e até a ajudar os soropositivos que conhece pela vida. “Tem 140 soropositivos vivos em Pato Branco, 24 no centro, quase todos profissionais liberais e comerciários e não querem mostrar a cara. Acha que tem prejuízo de perder emprego. Está empregado, descobriu que tem? O empresário manda embora, ele pode ser profissional autônomo ou ter seu próprio negócio, porque entra com uma ação e vai ganhar, porque é contra lei. A lei não permite fazer teste para entrar na empresa”, mencionou.

Acompanhamento
Todos os meses, vai ao Centro de Orientação e Apoio Sorológico (Coas). “O (médico) Cândia é gente fina e me disse: José, esteja bom ou ruim, todo mês quero te ver aqui”, então vou uma ou duas vezes por mês e de quatro em quatro meses faço coleta de sangue para ver como está”. Com isso, ele sempre sabe na ponta da língua os índices de resultados de seus exames e comemora a manutenção da imunidade. “Esse mês pensei que teria que tomar o coquetel, porque o pai ficou uma semana no hospital e quando o trouxe para casa, fiquei uma outra semana com a mãe. Eu não comia direito, não pude fazer exercício físico, não dormia direito”. Mas sua imunidade não baixou.
“Eu pensei que cuidar de idoso era uma das coisas mais fáceis do mundo, mas é muito difícil. Não é. Se você fala alto está gritando, se fala baixo não está dando atenção, pensam que você não respondeu. Se está na cozinha fazendo almoço te chamam, você vem e quando pergunta o que eles querem não se lembram mais, quer que dê atenção”, exemplifica.
Sobre o dia que descobriu ser portador do vírus, José se recorda que só chegou em casa e disse: “tenho HIV. Amanha vou no Coas”. Ele tentou por muito tempo responder à pergunta da família e de todos que sabiam da notícia: “todo dia, mais de 20 pessoas me faziam essa pergunta: sabe de quem você pegou? Eu não dormia mais e não tinha maneira de descobrir. Sabe de uma coisa? O estresse abala o organismo. O meu dever é não transmitir para os outros, então não tem importância saber ao certo como eu peguei”, resume.
Questionado sobre como nota a atitude das pessoas frente à Aids, o soropositivo percebe que não olham como uma doença mortal. Apesar de fatal, está banalizada.
“Eu não sei se descobri cedo ou o que, mas a única coisa que eu faço para não tomar medicamento é a qualidade de vida, que aumentou em 80%, porque durmo cedo, não fico mais em acampamentos por três dias fazendo festa. Levo a mãe e o pai pra cama por volta de 20h15, desligo a TV para ficar em silêncio, depois ligo mais um pouco pra ver o jornal, desligo a televisão, se passar de certa hora e eu não dormi fico pensando, mas só em coisa boa. Sou analfabeto digital por opção, mas deletar eu sei dizer, o pensamento negativo apago na hora. Só penso nas coisas boas na vida. É o que fazemos com prazer, faço tudo com prazer, mesmo que agora faz dois anos que não posso ir acampar, primeiro ficava três dias, depois dois, agora não vou mais nem no domingo, fico quase 24 horas, só saio de casa para fazer os negócios quando tem alguém que fique com eles. Para mim pessoalmente não é bom, para qualquer pessoa não é, mas faço isso com prazer. Eles nunca me abandonaram. Que jovem que alguma vez não faz alguma sujeira ou coisa errada? E agora que eles precisam, como vou abandonar? Tenho que me privar do que mais gosto e pronto”, reitera, determinando sua vida.

AIDS, sua atitude faz a diferença
Esse é o slogan, mas José nota que os jovens se conhecem e, mesmo tendo preservativo, no calor da juventude por vezes acabam deixando de lado. “Vai outra vez, outra vez, outra vez, um vai pegando confiança no outro, mas você não sabe se o outro é sincero na relação ou não. Um desses pega e quando vai saber já está com o vírus”.
Acompanhando tudo que sai sobre Aids, mesmo nunca tomando medicamento, José sabe do problema da adesão ao tratamento, que é sério. “Tem que pegar e suportar aquele efeito adverso até o medicamento se adaptar ao organismo. Senão, precisa procurar o médico para mudar o tratamento. Outra coisa importante, não pode queimar etapas, começa tomar um comprimido mais fraco e se adaptando aquele e tomando certinho pode tomar por sete anos só aquele, para depois passar para um mais forte. Tomando certo aquele, até chegar no último pode viver 34 anos tomando o coquetel certo”.
José é daqueles que vive preparado para não ficar doente. Mas se precisar está mais preparado ainda, pois prepara sua cabeça para tal. “Eu às vezes viajo, sei que vou para lugares tão lindos que nunca vi na vida, por mais que tenha viajado. Lugares tão bonitos e lindos. Às vezes ou para lugares tão feios e difíceis de sair, tanta gente horrível. Primeiro acordava suado, hoje se eu ver coisa feia não tem problema. Tenho fé, sou católico apostólico romano praticante. Se estou certo ou errado, também não vem ao caso, preciso acreditar em algo superior, não é possível que conheçamos só dez metros da infinidade da terra. Não é possível que não tenha outras pessoas inteligentes em outros lugares. Tenho que acreditar em uma pessoa superior”.
(Fotos Daiana Pasquim / Arte-final Lucas Piaceski)

Reprodução de Legendas 
1
O cenário da capa de 2011 felizmente persiste: HIV soropositivo e saudável

2
“Tem 140 soropositivos vivos em Pato Branco, 24 no centro, quase todos profissionais liberais e comerciários e não querem mostrar a cara”, informou José



“Esse mês pensei que teria que tomar o coquetel, porque o pai ficou uma semana no hospital e quando o trouxe para casa, fiquei uma outra semana com a mãe. Eu não comia direito, não pude fazer exercício físico, não dormia direito”. Mas sua imunidade não baixou.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

CRÔNICA - Esforço Formiguinha




Pé ante pé, quase sonâmbula, Henriqueta arrasta-se para o banheiro empurrada pelo toque do despertador. Mais uma manhã urgia e clamava por trabalho. Acomoda-se sentada e começa a olhar para os quadrados brancos delimitados pelo rejunte cinza escuro. Nota então que deles, de quando em quando, movimentavam-se pequenos pontinhos pretos que ora escondiam-se, ora seguiam em fileiras. “Formigas”, pensou.
O sono ainda presente conteve o impulso de matá-las e, enquanto liberava seu organismo do armazém da noite, passou a observar o comportamento desses insetos que vivem em comunidade. A súbita apreciação deu-lhe a certeza sobre o quanto seres humanos e formigas são parecidos. Do seu esforço, à sua pequenez. Da sua persistência, à sua vitória.
Sim, Henriqueta se deu conta que esse levantar diário seguido da ida para o trabalho tentando lançar suas novas ideias, o hábito de abrir a janela e tentar enxergar diferente, é nada mais que um esforço formiguinha. Os insetos pequeninos andavam em filas, quase que rastreando uns aos outros, pelo cheiro, pela atitude, pelo mero costume de se seguirem? Questionou. E o livre arbítrio, em que piso quadrado se perdeu? Quantas assim se desgarraram pelo caminho, morreram na empreitada, foram abandonadas pelo grupo sem ao menos uma palavra de carinho, sem um tempo para dizer “adeus”?
O que nós seres humanos fazemos uns com os outros e com nós mesmos durante o ano? Quando a gente afunda a cabeça nos rejuntes acinzentados e arrastamos nossos músculos e neurônios para um trabalho puxado, quando ligamos o piloto automático e percorremos as trilhas que nos dizem que temos que viver. Essa vontade de fazer diferente esperando um elogio é um esforço formiguinha. Não passa muito da dedicação para construir seu próprio ninho. As formigas-humanas focam suas rainhas e buscam reconhecimento, um lugar ao sol. As formigas-rainhas são seu chefe, seus clientes e fornecedores, o maior salário, a gente suporta a busca e tudo que nela implica porque queremos chegar na casa confortável, na viagem desejada, no crescimento salutar da família, na felicidade que uma formiga, sequer, talvez nunca venha a experimentar.
“Fora dos desenhos animados, será que uma formiga é feliz?”, divagou a operária. O erro em que decorrem os humanos é o de querer fazer isso, sozinhos. A história da comunidade da formiga nós não seguimos muito não. Quanto mais intitulamos “comunidades”, menos as praticamos. Por isso, quem nunca se sentiu carregando o mundo nas costas? E nunca nem foi reconhecido por esse esforço hercúleo? - filosofou.

“Eu sou uma formiga”, sussurrou Henriqueta, coçando os olhos. Já de frente ao espelho, viu agora subindo as paredes, como que num retrovisor, a carreira de negras patas. Seria uma infestação ou uma forma sensível e matinal de perceber que todo esforço exige algum custo e que nem sempre você vai conseguir ver a formiga Rainha, ou se tornar uma. Aliás, Henriqueta desde então criou uma teoria: Há pessoas que nascem “formigas rainha”, outras, eternas operárias. Os seres humanos são mesmo assim? “Não seja tola, Henriqueta, são apenas formigas invadindo seu banheiro”.
Trilhou do banheiro ao quarto, vestiu-se e foi, sozinha em seu carro, para o labor que a inebriava. Ela queria crescer na vida. Lá na cozinha, no entorno do pote de açúcar, os pontos pretos buscavam uma forma de furar o bloqueio. Era uma questão de vida ou morte.
– 25 de janeiro de 2013, 19h01