quinta-feira, 6 de julho de 2017

Literatura em Sementes


Os "10" livros que todos deveriam ler!?
tentador e árduo convite para listar os textos imprescindíveis de serem lidos na vida veio da colega de profissão Mariana Salles. Pretensão, angústia, honradez passaram pela cabeça na hora. Passada a euforia, a fórmula foi simples, listar numa página tudo que me veio à mente, os livros que mais me marcaram na formação pessoal e profissional, pois há uma certa doutrina que acompanha um estudante da área de Letras. Eu escorreguei e listei 12, como os discípulos, os meses do ano, os símbolos do zodíaco... 
Espero que gostem! Se já têm opinião ou curiosidade sobre algumas dessas obras, deixe o seu comentário ;)


O voo da Guará vermelha (2005), de Maria Valéria Rezende
Obra fora dos eixos de grandes centros é o primeiro romance desta freira escritora (premiada no Jabuti por Quarenta Dias e no Casa de Las Américas por Outros Cantos). Protagonizada por uma prostituta com Aids e um servente de pedreiro, ambos atravessando o seu próprio “sertão" (solidão). Do prisma dos invisíveis, o romance é uma homenagem às histórias, que dão novas oportunidades de vida para ambos. 

Como água para chocolate (1989), de Laura Esquivel
Obra latino-americana que inaugura um novo gênero, segundo alguns críticos, a cozinha-ficção. Explora a sensação do bolinho na gordura quente, a essência das lágrimas nascida da cebola, as formas de amor presentes na jovem Tita, a quem é imposto um costume cultural mexicano. A obra, que tem filme homônimo de Alfonso Arau, demonstra ser possível mudar destinos.

Um teto todo seu (1929), de Virginia Woolf
Apesar de ser uma obra de ensaios, não um dos famosos romances da escritora inglesa, mostra com nitidez o percurso que a mulher fez, principalmente no século XIX, para ter hoje suas conquistas, em especial no universo das letras.

Felicidade Clandestina (1971), de Clarice Lispector
Livro de contos muito indicado pelas universidades, promove um mergulho em seu âmago valorizando as minuciosas coisas da vida: na infância, na adolescência, na vida em família; desde um simples chiclé a um livro ou conquista para a vida toda.

Emília no País da Gramática (1934), de Monteiro Lobato
De uma forma leve e bem-humorada, a obra colabora com a aprendizagem de nossa língua materna. Perfeita para aqueles que detestam estudar Língua Portuguesa; faz cultivar a vontade de escrever, falar bem, compreender as ações da língua. 

Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O Médico e o Monstro, 1886), de Robert Louis Stevenson
Uma das mais célebres histórias de horror da literatura mundial, clássico do Duplo. A obra do escocês escrita em seis dias a partir de um pesadelo é repleta de suspenses, com crimes, mistérios e investigações capciosas. 

A Queda da Casa de Usher (1839), de Edgar Allan Poe
Dramático universo aterrorizante, conto da literatura gótica carregado de melancolia que descreve a relação de um casal de irmãos, os Usher, na narrativa de um antigo amigo de infância. Se for para escolher ao menos uma obra de Poe para conhecer, obrigatório ser esse texto.

Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre
Apresenta com nitidez a formação da sociedade brasileira escravagista e permite compreender algumas heranças da miscigenação, de costumes culturais e gastronômicos, de formação político-histórica, enfim, do “jeitinho brasileiro”.

Édipo Rei, de Sófocles (472 a.C)
Clássica tragédia grega, fundamental para compreender a relação mãe e filho, entre tantas outras significações. Por meio dele, indico de modo geral a leitura de mitologia grega, pois é um berço para compreendeer os mitos que sustentam o funcionamento da humanidade. Sugestão, Dicionário de Mitos Literários, de Pierre Brunel.

A Arte Poética (335 a.C. e 323 a.C.),  de Aristóteles
Primeiro tratado sobre a literatura de que temos notícia, disseca os elementos. Explica a formação de condições como a catarse e a mimese, e de produções como a tragédia e a comédia. Enfim, fundamental. Também indicaria O Demônio da Teoria, de Antoine Compagnon, que discorre sobre a dialética da leitura, as relações da obra, diante do autor, do leitor e do mundo. “O texto instrui, o leitor constrói”. Colabora na formação do sujeito crítico para a análise de textos artísticos.

Daiana Pasquim, jornalista, professora e mestre Letras: Literatura, Sociedade e Interartes

Artigo originalmente escrito em Maio de 2017

Matéria publicada no caderno Almanaque do Jornal Diário do Sudoeste Data: 13 e 14/05/2017

segunda-feira, 20 de março de 2017

CRÔNICA de INSS: Iguais Nunca Sofrem Sozinhos - a metamorfose



Faixa no pé, papéis na mão e nos olhos aquela expressão cansada de quem amanheceu com as galinhas e viajou cerca de uma hora para aqui chegar. A maioria de ônibus. Sentiu o frio da madrugada dessas vésperas de Outono, que em três dias chegará para as folhas metamorfosear. E nas mãos aquele calhamaço de folhas da previdência social: o requerimento de benefício por incapacidade, o atestado médico com o CID certo, os doze holerites que atestavam os reais recebidos no último ano, carteira de trabalho há tempos não assinada, comprovante de endereço (do município correto onde está morando agora - e não de qualquer outro lugar no qual já tenha feito a sua vida), RG, CPF, original e cópia; Ah, você é mãe!? Certidão de nascimento de seu filho, carteira de vacinação, original e cópia. E eu estou aqui ao vivo, cópia e original. Porque o original é o que precisa receber o benefício de um valor por hora contado como perdido - aquela metade do salário, o labor de quinze dias, vai se perdendo nos rostos inexpressivos atrás das mesas numeradas e azuis, na carranca dos médicos - menos quando conversam entre si - e nas faces de espera, impacientes, desoladas, amanhecidas, amassadas, enfaixadas, com pastas e sacolas de documentos em mãos. Papelada. Papelão. A cópia é o que vai se macerando em meio a esse cenário, o que sobra após tudo isso. Espero, espero tanto, as cadeiras e as folhas vão mudando de lugar: de botinas para sapatos femininos, de sapatos masculinos para sapatilhas, de tênis para sapatos, pessoas de peso e idades diferentes mas tão iguais. E as cadeiras do painel dois vão se esvaziando, eu esperando, esperando… É salteada, essa senha não sequencial,  atendimento espontâneo,  bla bla bla… Aquela sensação que não vai ser atendida nunca. Um suspiro profundo para manter a calma a cada senha chamada, que não a minha, gente que me é igual e chegou depois, bem depois. Já foi, já resolveu. E eu  espetada. Gostava do 7, do 47. A ironia dos números: tempo médio de espera de 40 min, cheguei 8h25. Já passou das dez. O horário de espera duas vezes. A sala que esvaziou, voltou a encher... Bla bla bla. Bonés,  boinas,  papéis.  Muletas, mais faixas, uma tossida, os móveis imóveis, os dedos mais grossos deslizando pelas telas, cabeças baixas naquela posição que em muito tempo prejudica a sua coluna, pés batendo no chão, mãos batendo nas pastas, dedos inquietos,  chapéus nas cabeças, oleosidade também. Uns bens cheirosos, com roupa de missa, outros nem tanto, todos à espera. Sentando, calando, tantos passando os dedos na tela, bateria fraca, paciência lenta, debilitada, quase esgotando. Mas vamos ficando, pensamento voando, presos anêmicos do sistema, essa previdência que me permite persistir, insistir, assistir aos passos, impacientes, para lá e para cá, papéis já um pouco amassados, bocejos, pés batendo, será que já perdi a senha enquanto escrevia? Levante a cabeça a cada sinal sonoro. Não perca, não esqueça, aqueça a esperança, está quente a sala, ainda bem que é quase outono. Uma boa mistura de ingredientes: uma porção de gente, de  discrepantes pachorras e traquejos, em que se adiciona o tempo e as condições da estação, somam um objetivo em comum. Metamorfose. Chamam meu maço de folhas, enfim. Pouco mais de duas horas depois. Tudo conferidinho, um leve sorriso, senha nova. Espera, espera. Mais passos de um lado para o outro contemplados em minha inércia. O segurança é o mais vivo, pois anda para lá e para cá. Ficar sentada chateia, achata, assenta, copializa… pouca brisa, ar condicionado, tudo fechado. Grandes máquinas com grade. Todos iguais. Gente, já ausente, só de corpo presente. O pensamento voa, voa, à toa, até ficar impaciente, novamente. Sou tão indiferente! De repente, a porta do senhor Doutor abre, chama um nome. Silêncio. Repete-0. Sem passos.
Qualquer voz do lado informa: “ela foi ao banheiro”. 

Escrito na manhã de 17 de março de 2017.
Foto: ilustração Pixabay



segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

RESENHA O Busão de Floripéia, de Salma Ferraz

Se beber, não dirija. Mas também não aceite a carona de estranhos. Pegue um ônibus, é bem melhor! 


Os desígnios dos teóricos da literatura, em dar voz a produção "ex-cêntrica" são concretizados pela escritora Salma Ferraz, por meio dos personagens que costuma criar, clima que muito senti ao ler O Busão de Floripeia (Edifurb, 2016). Eu me lembrei da teórica canadense Linda Hutcheon (Poética do Pós-Modernismo: História, Teoria e Ficção, Imago, 1991). Salma evoca Ferreira Gullar (Uma luz no chão): “A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalhas e gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos (…)”. 
O "povo nosso de cada dia" é a fonte de inspiração de suas obras. Neste seu trigésimo livro, são os motoristas de ônibus da Ilha da Magia (seus cobradores e passageiros) que dão os conteúdos para as histórias. O tom verídico dos textos está na preservação fiel das variações linguísticas, colocando o leitor quase que na condição de espião dos "causos" contados. Um dos pontos altos é "Susy Cuecão", que faz cair por terra o machismo arraigado como um plot twist, após o texto todo provar a sustentação do "homem macho". Território não só dominado, como já catalogado pela autora em seu Dicionário Machista (Jardim dos Livros, 2013 - Leia resenha http://bit.ly/DePasquimDicMach). Comoveu-me “A bênção da matriarca”, que atualiza uma relação entre mãe e filha, por meio do dogma da fé - e do sexo. 
A maioria das histórias gira em torno do sexo: do fazer, do pensar, do querer algo sobre ele. Daí se depreende uma leitura cotidiana como sendo "aquilo" o principal antídoto para o stress dos profissionais que pelo centro rodam. 
Há em O Busão da Floripeia muito do clima que já tínhamos em Nem sempre amar é tudo  (Edifurb, 2012 - Leia resenha em http://bit.ly/DePasquimNSAmarétudo), obra em que empregadas domésticas e idosos já afloraram histórias superssensíveis. 
Ler O Busão é tomar conhecimento do texto de Salma em sua formatação mais ousada. Histórias de famílias são narradas no entorno do busão. E muitas delas atacam preconceitos ao lhes encarar de frente e da forma mais simples.
O livro dispõe ainda de uma riquíssima caída histórica local, começando com inclinações poéticas e musicais de personas culturais de Florianópolis: digo histórica, uma vez que Salma catalogou e contou alguns dos marcos sociais-culturais das produções da ilha da Magia, no começo e meados do século XX. Há peripécias vividas e destacáveis formações profissionais que se pode conferir nos currículos que vêm em nota. Floripeia é sempre a musa inspiradora destas poesias e músicas no prólogo da obra. 
Em tempo, os traços do ilustrador Fabrício Garcia, o Manohead, fizeram-me demorar na capa e ativar o imaginário antes da leitura de cada uma das nove viagens roteirizadas por ela para embarcar e se envolver. 
Uma vez tive o prazer de publicar uma entrevista perfil de Salma Ferraz (Diário do Sudoeste, 2012), entitulada “Ela é o livro” na qual fiz a analogia “alma feroz”. Para mim, ela sempre soou assim. Leia aqui http://bit.ly/DePasquimElaéolivro 
Quem sabe a magia de Salma em seus textos popularescos seja alcançada por já ter escrito teóricos com tanta propriedade "sobre Deus e o diabo”. Assim, alcança territórios instáveis com muita facilidade e passa do grotesco e desbocado para uma leitura da humanidade. Ela escreve o inconsciente coletivo e verbaliza frases que muitos pensam e poucos dizem.



Salma foi minha professora na licenciatura em Letras Português e Literaturas em Língua Portuguesa na UFSC (2008-2012) e desde então tornou-se uma amiga querida. É um prazer receber seus livros em primeira mão e poder dissipar entre os meus. O pacote amarelo com o timbre da UFSC chegou em novembro de 2016 e a resenha estava prometida deste então, rascunhada nos primeiros quinze dias, tão logo li. Faltava o pente fino. Peraltices pessoais e dissertativas me impediram de publicar antes. Mas a passagem ainda é válida, está fresca, dá tempo de vc pegar esse busão!