Faixa no pé, papéis na mão e nos olhos aquela expressão cansada de quem amanheceu com as galinhas e viajou cerca de uma hora para aqui chegar. A maioria de ônibus. Sentiu o frio da madrugada dessas vésperas de Outono, que em três dias chegará para as folhas metamorfosear. E nas mãos aquele calhamaço de folhas da previdência social: o requerimento de benefício por incapacidade, o atestado médico com o CID certo, os doze holerites que atestavam os reais recebidos no último ano, carteira de trabalho há tempos não assinada, comprovante de endereço (do município correto onde está morando agora - e não de qualquer outro lugar no qual já tenha feito a sua vida), RG, CPF, original e cópia; Ah, você é mãe!? Certidão de nascimento de seu filho, carteira de vacinação, original e cópia. E eu estou aqui ao vivo, cópia e original. Porque o original é o que precisa receber o benefício de um valor por hora contado como perdido - aquela metade do salário, o labor de quinze dias, vai se perdendo nos rostos inexpressivos atrás das mesas numeradas e azuis, na carranca dos médicos - menos quando conversam entre si - e nas faces de espera, impacientes, desoladas, amanhecidas, amassadas, enfaixadas, com pastas e sacolas de documentos em mãos. Papelada. Papelão. A cópia é o que vai se macerando em meio a esse cenário, o que sobra após tudo isso. Espero, espero tanto, as cadeiras e as folhas vão mudando de lugar: de botinas para sapatos femininos, de sapatos masculinos para sapatilhas, de tênis para sapatos, pessoas de peso e idades diferentes mas tão iguais. E as cadeiras do painel dois vão se esvaziando, eu esperando, esperando… É salteada, essa senha não sequencial, atendimento espontâneo, bla bla bla… Aquela sensação que não vai ser atendida nunca. Um suspiro profundo para manter a calma a cada senha chamada, que não a minha, gente que me é igual e chegou depois, bem depois. Já foi, já resolveu. E eu espetada. Gostava do 7, do 47. A ironia dos números: tempo médio de espera de 40 min, cheguei 8h25. Já passou das dez. O horário de espera duas vezes. A sala que esvaziou, voltou a encher... Bla bla bla. Bonés, boinas, papéis. Muletas, mais faixas, uma tossida, os móveis imóveis, os dedos mais grossos deslizando pelas telas, cabeças baixas naquela posição que em muito tempo prejudica a sua coluna, pés batendo no chão, mãos batendo nas pastas, dedos inquietos, chapéus nas cabeças, oleosidade também. Uns bens cheirosos, com roupa de missa, outros nem tanto, todos à espera. Sentando, calando, tantos passando os dedos na tela, bateria fraca, paciência lenta, debilitada, quase esgotando. Mas vamos ficando, pensamento voando, presos anêmicos do sistema, essa previdência que me permite persistir, insistir, assistir aos passos, impacientes, para lá e para cá, papéis já um pouco amassados, bocejos, pés batendo, será que já perdi a senha enquanto escrevia? Levante a cabeça a cada sinal sonoro. Não perca, não esqueça, aqueça a esperança, está quente a sala, ainda bem que é quase outono. Uma boa mistura de ingredientes: uma porção de gente, de discrepantes pachorras e traquejos, em que se adiciona o tempo e as condições da estação, somam um objetivo em comum. Metamorfose. Chamam meu maço de folhas, enfim. Pouco mais de duas horas depois. Tudo conferidinho, um leve sorriso, senha nova. Espera, espera. Mais passos de um lado para o outro contemplados em minha inércia. O segurança é o mais vivo, pois anda para lá e para cá. Ficar sentada chateia, achata, assenta, copializa… pouca brisa, ar condicionado, tudo fechado. Grandes máquinas com grade. Todos iguais. Gente, já ausente, só de corpo presente. O pensamento voa, voa, à toa, até ficar impaciente, novamente. Sou tão indiferente! De repente, a porta do senhor Doutor abre, chama um nome. Silêncio. Repete-0. Sem passos.
Qualquer voz do lado informa: “ela foi ao banheiro”.
Escrito na manhã de 17 de março de 2017.
Foto: ilustração Pixabay
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