Se beber, não dirija. Mas também não aceite a carona de estranhos. Pegue um ônibus, é bem melhor! |
Os desígnios dos teóricos da literatura, em dar voz a produção "ex-cêntrica" são concretizados pela escritora Salma Ferraz, por meio dos personagens que costuma criar, clima que muito senti ao ler O Busão de Floripeia (Edifurb, 2016). Eu me lembrei da teórica canadense Linda Hutcheon (Poética do Pós-Modernismo: História, Teoria e Ficção, Imago, 1991). Salma evoca Ferreira Gullar (Uma luz no chão): “A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalhas e gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos (…)”.
O "povo nosso de cada dia" é a fonte de inspiração de suas obras. Neste seu trigésimo livro, são os motoristas de ônibus da Ilha da Magia (seus cobradores e passageiros) que dão os conteúdos para as histórias. O tom verídico dos textos está na preservação fiel das variações linguísticas, colocando o leitor quase que na condição de espião dos "causos" contados. Um dos pontos altos é "Susy Cuecão", que faz cair por terra o machismo arraigado como um plot twist, após o texto todo provar a sustentação do "homem macho". Território não só dominado, como já catalogado pela autora em seu Dicionário Machista (Jardim dos Livros, 2013 - Leia resenha http://bit.ly/DePasquimDicMach). Comoveu-me “A bênção da matriarca”, que atualiza uma relação entre mãe e filha, por meio do dogma da fé - e do sexo.
A maioria das histórias gira em torno do sexo: do fazer, do pensar, do querer algo sobre ele. Daí se depreende uma leitura cotidiana como sendo "aquilo" o principal antídoto para o stress dos profissionais que pelo centro rodam.
Há em O Busão da Floripeia muito do clima que já tínhamos em Nem sempre amar é tudo (Edifurb, 2012 - Leia resenha em http://bit.ly/DePasquimNSAmarétudo), obra em que empregadas domésticas e idosos já afloraram histórias superssensíveis.
Ler O Busão é tomar conhecimento do texto de Salma em sua formatação mais ousada. Histórias de famílias são narradas no entorno do busão. E muitas delas atacam preconceitos ao lhes encarar de frente e da forma mais simples.
O livro dispõe ainda de uma riquíssima caída histórica local, começando com inclinações poéticas e musicais de personas culturais de Florianópolis: digo histórica, uma vez que Salma catalogou e contou alguns dos marcos sociais-culturais das produções da ilha da Magia, no começo e meados do século XX. Há peripécias vividas e destacáveis formações profissionais que se pode conferir nos currículos que vêm em nota. Floripeia é sempre a musa inspiradora destas poesias e músicas no prólogo da obra.
Em tempo, os traços do ilustrador Fabrício Garcia, o Manohead, fizeram-me demorar na capa e ativar o imaginário antes da leitura de cada uma das nove viagens roteirizadas por ela para embarcar e se envolver.
Uma vez tive o prazer de publicar uma entrevista perfil de Salma Ferraz (Diário do Sudoeste, 2012), entitulada “Ela é o livro” na qual fiz a analogia “alma feroz”. Para mim, ela sempre soou assim. Leia aqui http://bit.ly/DePasquimElaéolivro
Quem sabe a magia de Salma em seus textos popularescos seja alcançada por já ter escrito teóricos com tanta propriedade "sobre Deus e o diabo”. Assim, alcança territórios instáveis com muita facilidade e passa do grotesco e desbocado para uma leitura da humanidade. Ela escreve o inconsciente coletivo e verbaliza frases que muitos pensam e poucos dizem.
Salma foi minha professora na licenciatura em Letras Português e Literaturas em Língua Portuguesa na UFSC (2008-2012) e desde então tornou-se uma amiga querida. É um prazer receber seus livros em primeira mão e poder dissipar entre os meus. O pacote amarelo com o timbre da UFSC chegou em novembro de 2016 e a resenha estava prometida deste então, rascunhada nos primeiros quinze dias, tão logo li. Faltava o pente fino. Peraltices pessoais e dissertativas me impediram de publicar antes. Mas a passagem ainda é válida, está fresca, dá tempo de vc pegar esse busão!
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