Convivendo com o HIV: por trás da porta há
muito mais do que nossa vã imaginação pode alcançar. Essa entrevista nos leva a
refletir sobre os mistérios do organismo e de nossa capacidade mental também
Não foi ontem que o
conhecemos. Foi nessa mesma época do ano passado, quando estampamos na capa
do Saúde sua foto com a manchete “HIV Soropositivo e
saudável”, em 2 de dezembro de 2011. Por isso vamos chamar essa edição de “Capítulo
2 da Vida de José”. Mesmo abraçando o HIV desde o primeiro momento,
contou pra família, para o pessoal do prédio, para as pessoas da rua, deu
entrevistas à mídia, José também encara de frente os preconceitos e não tem
medo nem de ficar doente, tampouco de morrer.
Marcamos uma nova
conversa para a manhã desta terça-feira (27), pois gostaria de saber o que
mudou na vida de um soropositivo para HIV durante um ano, após sair na capa
deste caderno.
Com a mochila nas
costas e a máquina fotográfica a tiracolo às 9h30 da manhã ensolarada, devo
confessar me ver numa cena de filme de suspense ao entrar livremente pelo
Palácio dos Arcos e pegar o elevador até o 3º andar, dar de cara com um
corredor escuro cujos sensores demoraram em me reconhecer. Quando localizei a
porta 309, bati. Ouço passos e José abre a porta, só de bermuda. O impacto da falta da
camisa se dissipou como num sopro ao dar o primeiro passo para o apartamento e
encontrar dois idosos, um em cada sofá, fazendo o “L” da sala, assistindo a um
canal religioso. Dei bom dia aos seus pais apertando as mãos e fitando olhares
de quem busca entender o que estava acontecendo, enquanto José avançou para a
mesa e puxou uma cadeira para mim, sentando-se ao lado. Tirei da mochila o
notebook e fui tentando quebrar o gelo, acomodando o computador em frente a uma
bíblia e um vaso de flores alaranjadas, dividindo espaço ainda com uma caixa de
luvas descartáveis, alguns papéis, Mimi - o gato que adorou o PC e ficou
adornando-o enquanto conversávamos. José passou a mão num vidrinho e passou a
me explicar que tinha recebido na semana passada essas gotinhas homeopáticas de
um frei capuchinho que conversou em Curitiba, durante um congresso. “Aqui diz
para tomar cinco gotas, mas ele me falou para tomar 15. Eu disse: vou ficar
forte como um touro”, riu.
Quem é José?
Dono de um passado
repleto de adrenalina, ex-estudante de Jornalismo e de Letras, ex-militante do
PC do B, José Leoclécio Almeida, 56 acumula na bagagem viagens ao ter
percorrido todas as capitais (com exceção de Roraima) e muitas cidades brasileiras.
Conheceu gente de todo tipo e há alguns anos voltou a Pato Branco, para
descobrir doenças que mudaram seu percurso de vida.
Doador de sangue, foi
num desses gestos de voluntariado que os exames acusaram hepatite C e o vírus
HIV positivo. Para curar a primeira, ele tomou por seis meses injeções que
custaram R$ 1.515 e mais quatros comprimidos de manhã, a tarde e a noite. Já a
segunda, faz parte de um programa diário de combate munido de qualidade de
vida, que inclui caminhadas, noites bem dormidas, nada de álcool ou exageros,
refeições regradas e nas horas certas. Ser cuidador de idosos marca a rotina -
a começar pelos pais Gitana Teixeira de Almeida, 76 e Olmiro Rodrigues de
Almeida, 82, ela com Alzheimer, ele com Diabetes. E José, soropositivo, cuida
deles o tempo todo. A informação mais importante: ele não tem a Aids
manifestada, apenas é portador do vírus. Por isso, ainda não toma coquetel
algum de medicamentos.
Em busca da vida
saudável
No mesmo dia, José
descobriu o HIV e a hepatite, com o fígado já 40% deteriorado. “Fiz o
tratamento bem certinho, eu bebia um pouco, mas o dr.Volpato me falou para ir
na psicóloga, fazer fisioterapia, não andar com quem bebe, nem ir em festas ou
formaturas, para após seis meses ele me dar o medicamento. Eu disse: sua
obrigação é me dar o medicamento, meu dever eu sei. A partir do momento em que
eu tomar o primeiro medicamento eu não uso mais álcool e tudo. É só dizer não e
obrigado e acabou. Vou a formaturas, ando com quem carrega pinga junto, vou aos
bares, em todo e qualquer lugar. No inicio é ruim não tanto pela falta
que te faz, mas pela insistência das pessoas que te conhecem: senta aqui, toma
uma que te pago, e ficam insistindo. Daí tem que que dizer, “não bebo mais,
obrigado e pronto”, afirmou incisivamente.
Para conservar a
saúde, José pratica exercício físico todos os dias, até quando chove, começa às
6h da manhã pelas ruas, de trevo a trevo. E depois, próximo de casa, na
academia ao ar livre, atrás da prefeitura. “Acho engraçado, estou descendo no
elevador e vêm as mulheres com os saltos altos, quando vê que está chovendo já
reclamam. Eu ponho uma bermuda e ao invés de por um tênis melhor para não
molhar, coloco chinelo de dedo e vou brincando como criança. São pessoas que
não se aceitam: quando chove, reclamam porque chove, frio porque está frio,
calor, porque tá calor. Fique um mês no semiárido do Nordeste, caminhe uns 15km
com uma lata de água e você já vai gostar de chuva”, aconselha conscientemente.
Estudante, não
errante
Nas andanças por
estudo e militância, ele começou por Palmas no curso de Letras que fez por um
período só. Depois, por causa do jornalismo, passou pela Universidade Federal
do Mato Grosso (UFMT) de Cuiabá, por Porto velho, pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC) de Curitiba, entre outras que não se lembra. Tudo isso para
dizer que José galga os mesmos sonhos que todos nós, dia a dia. “Não conclui
nenhum curso, sinto só economicamente, onde vejo o problema, senão não, porque
estudar, eu continuo estudando. Ler, continuo lendo. Sou meio cego de tanto
ler, uso num olho grau cinco e no outro quase seis. De seis em seis meses vou
ao oftalmologista e tenho que trocar o grau do óculos”, confessa.
Ele é muito bem
informado. Pelo argumento de autoridade de sua própria vida, José aprecia ler
textos científicos. Assim ele consegue explicar todas as transformações que o
HIV pode fazer ao organismo, consegue se preparar se for ficar doente, e até a
ajudar os soropositivos que conhece pela vida. “Tem 140 soropositivos vivos em
Pato Branco, 24 no centro, quase todos profissionais liberais e comerciários e
não querem mostrar a cara. Acha que tem prejuízo de perder emprego. Está
empregado, descobriu que tem? O empresário manda embora, ele pode ser
profissional autônomo ou ter seu próprio negócio, porque entra com uma ação e
vai ganhar, porque é contra lei. A lei não permite fazer teste para entrar na
empresa”, mencionou.
Acompanhamento
Todos os meses, vai ao
Centro de Orientação e Apoio Sorológico (Coas). “O (médico) Cândia é gente fina
e me disse: José, esteja bom ou ruim, todo mês quero te ver aqui”, então vou
uma ou duas vezes por mês e de quatro em quatro meses faço coleta de sangue
para ver como está”. Com isso, ele sempre sabe na ponta da língua os índices de
resultados de seus exames e comemora a manutenção da imunidade. “Esse mês
pensei que teria que tomar o coquetel, porque o pai ficou uma semana no
hospital e quando o trouxe para casa, fiquei uma outra semana com a mãe. Eu não
comia direito, não pude fazer exercício físico, não dormia direito”. Mas sua
imunidade não baixou.
“Eu pensei que cuidar
de idoso era uma das coisas mais fáceis do mundo, mas é muito difícil. Não é.
Se você fala alto está gritando, se fala baixo não está dando atenção, pensam
que você não respondeu. Se está na cozinha fazendo almoço te chamam, você vem e
quando pergunta o que eles querem não se lembram mais, quer que dê atenção”,
exemplifica.
Sobre o dia que
descobriu ser portador do vírus, José se recorda que só chegou em casa e disse:
“tenho HIV. Amanha vou no Coas”. Ele tentou por muito tempo responder à
pergunta da família e de todos que sabiam da notícia: “todo dia, mais de 20
pessoas me faziam essa pergunta: sabe de quem você pegou? Eu não dormia mais e
não tinha maneira de descobrir. Sabe de uma coisa? O estresse abala o
organismo. O meu dever é não transmitir para os outros, então não tem
importância saber ao certo como eu peguei”, resume.
Questionado sobre como
nota a atitude das pessoas frente à Aids, o soropositivo percebe que não olham
como uma doença mortal. Apesar de fatal, está banalizada.
“Eu não sei se descobri
cedo ou o que, mas a única coisa que eu faço para não tomar medicamento é a
qualidade de vida, que aumentou em 80%, porque durmo cedo, não fico mais em
acampamentos por três dias fazendo festa. Levo a mãe e o pai pra cama por volta
de 20h15, desligo a TV para ficar em silêncio, depois ligo mais um pouco pra
ver o jornal, desligo a televisão, se passar de certa hora e eu não dormi fico
pensando, mas só em coisa boa. Sou analfabeto digital por opção, mas deletar eu
sei dizer, o pensamento negativo apago na hora. Só penso nas coisas boas na
vida. É o que fazemos com prazer, faço tudo com prazer, mesmo que agora faz
dois anos que não posso ir acampar, primeiro ficava três dias, depois dois,
agora não vou mais nem no domingo, fico quase 24 horas, só saio de casa para
fazer os negócios quando tem alguém que fique com eles. Para mim pessoalmente
não é bom, para qualquer pessoa não é, mas faço isso com prazer. Eles nunca me
abandonaram. Que jovem que alguma vez não faz alguma sujeira ou coisa errada? E
agora que eles precisam, como vou abandonar? Tenho que me privar do que mais
gosto e pronto”, reitera, determinando sua vida.
AIDS, sua atitude faz
a diferença
Esse é o slogan, mas
José nota que os jovens se conhecem e, mesmo tendo preservativo, no calor da
juventude por vezes acabam deixando de lado. “Vai outra vez, outra vez, outra
vez, um vai pegando confiança no outro, mas você não sabe se o outro é sincero
na relação ou não. Um desses pega e quando vai saber já está com o vírus”.
Acompanhando tudo que
sai sobre Aids, mesmo nunca tomando medicamento, José sabe do problema da
adesão ao tratamento, que é sério. “Tem que pegar e suportar aquele efeito
adverso até o medicamento se adaptar ao organismo. Senão, precisa procurar o
médico para mudar o tratamento. Outra coisa importante, não pode queimar
etapas, começa tomar um comprimido mais fraco e se adaptando aquele e tomando
certinho pode tomar por sete anos só aquele, para depois passar para um mais
forte. Tomando certo aquele, até chegar no último pode viver 34 anos tomando o
coquetel certo”.
José é daqueles que
vive preparado para não ficar doente. Mas se precisar está mais preparado
ainda, pois prepara sua cabeça para tal. “Eu às vezes viajo, sei que vou para
lugares tão lindos que nunca vi na vida, por mais que tenha viajado. Lugares
tão bonitos e lindos. Às vezes ou para lugares tão feios e difíceis de sair,
tanta gente horrível. Primeiro acordava suado, hoje se eu ver coisa feia não
tem problema. Tenho fé, sou católico apostólico romano praticante. Se estou
certo ou errado, também não vem ao caso, preciso acreditar em algo superior,
não é possível que conheçamos só dez metros da infinidade da terra. Não é
possível que não tenha outras pessoas inteligentes em outros lugares. Tenho que
acreditar em uma pessoa superior”.
(Fotos Daiana Pasquim
/ Arte-final Lucas Piaceski)
Reprodução de
Legendas
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O cenário da capa de
2011 felizmente persiste: HIV soropositivo e saudável
“Tem 140
soropositivos vivos em Pato Branco, 24 no centro, quase todos profissionais
liberais e comerciários e não querem mostrar a cara”, informou José
“Esse mês pensei que teria que tomar o coquetel,
porque o pai ficou uma semana no hospital e quando o trouxe para casa, fiquei
uma outra semana com a mãe. Eu não comia direito, não pude fazer exercício
físico, não dormia direito”. Mas sua imunidade não baixou.