segunda-feira, 22 de julho de 2013

Crítica literária – “As aventuras de Sherlock Holmes”


Sobre o fisgar do leitor, o narrador da falsa modéstia, a autenticidade desta amizade e os meus contos prediletos
Daiana Pasquim, Pato Branco, 22 de julho de 2013, às 23h47



Três dias fortes de inverno, quando cada qual buscava no guarda-roupa seu casaco mais robusto, passei em frente à lareira do 221B de Baker Street, como uma observadora de uma dupla instigante. Frequentemente recebíamos visitas à sala, que se acomodavam nas poltronas defronte ao fogo e, de quando em quando, saía e revistava a neve, visitava mansões e becos, portos e fazendas, adormecendo muito pouco durante essa viagem no universo das deduções. “As aventuras de Sherlock Holmes” foram publicadas originalmente em 1892, mas a edição que tinha em mãos faz parte da coleção obra-prima de cada autor, da Martin Claret (2011), com tradução de Casemiro Linarth. O deleite em compartilhar com esta obra, diante do uso da ciência e do método dedutivo para revelar os casos faz de nós, leitores, novos seres. Você nunca mais vai ver os fatos da mesma forma após conviver com o detetive criado pelo médico e escritor britânico, Sir Arthur Conan Doyle.
A cada um dos doze contos nesse universo de vasta obra, dr. John Watson vai nos fazendo tomar Sherlock Holmes como um amigo próximo com quem podemos contar. Nas primeiras aventuras descritas o médico aparece casado, apenas visitando sua antiga casa com o amigo detetive. Da metade do livro em diante ele retrocede mais na ordem cronológica e conta histórias que remontam ao tempo em que eram parceiros, contudo como o livro não é um romance, pouca atenção é dada a mulher do médico – a quem temos dificuldade até mesmo de localizar o nome - e o tempo da obra quase por completo temos a sensação da partilha de solteirice tanto de um, quanto de outro. O foco é sempre a solução das incógnitas que chegam até 221B. As mulheres (quase) ficam – para a dupla - em outro plano ou dimensão, mas estão vivas como peças de revelação de incógnitas em cada aventura.

O narrador
Se Sherlock Holmes tudo sabe, quiçá ele próprio devesse contar suas aventuras? Minhas premissas para Watson narrar o livro é a da falsa modéstia. Que graça teria se o próprio Holmes se vangloriasse? Iríamos, no mínimo, o considerar muito arrogante. Ao passo que o médico seu fiel amigo o coloca numa posição de obstinada inteligência, levando-nos a partilhar dessa crescente expectativa e admiração diante de um personagem para os leitores tão vivos quanto qualquer pessoa. Beth Brait em A Personagem começa sua obra justamente pondo em questão a verdade arraigada para os leitores de Sir Doyle como se Holmes tivesse realmente existido, tanto é que teve que dar um jeito, por pedido insistente de sua mãe e dos fãs, de “ressuscitar” o detetive após o embate com seu maior inimigo e a suposta morte na queda na cachoeira.
O foco narrativo, portanto, se tomarmos apenas Sherlock como protagonista, é de narrador-observador; mas temos que dar as glórias ao médico e igualmente protagonista Watson, cujas habilidades literárias são discutidas por Holmes na 12ª aventura do livro (As Faias Cor de Cobre) – o que muito me espantou -, é um exímio narrador-personagem, pois o próprio Sherlock Holmes em não menos que três momentos dessas 280 páginas, faz questão de pronunciar “é um prazer ter a sua companhia nessa aventura”. Estaríamos aí diante de uma falsa modéstia do médico, portanto?

A amizade
Não podemos concordar com isso, já que os laços entre Watson e Holmes são tão sinceros e naturais. A obra é vasta e os personagens (investigadores e vítimas) intrigantes, por isso cada solução buscada por Sherlock Holmes com o amparo de Watson indubitavelmente, nos inebriam. Volúpia do começo ao fim.
Essa amizade é tão autêntica que, mesmo ciente do cuidado que o amigo médico tem em contar os casos e, por consequência, da publicidade dada ao seu nome, Holmes questiona a forma como o doutor vê e descreve os fatos. Vamos a uma dose de metaliteratura:

“Fico contente ao verificar, Watson, que até agora captou muito bem esta verdade. E, nos pequenos relatos de nossas aventuras que teve a bondade de escrever, devo dizer que, embelezando-as em alguns pontos, não deu realce às causes célebres e aos processos sensacionais em que tomei parte, destacando também incidentes triviais em si mesmos, mas que davam oportunidade ao exercício das faculdades de dedução e síntese lógica que transformei em minha especialidade” (pág. 258)

Como leitora, tomei um susto com essa sequência de afirmações que julguei até um pouco “petulantes” do detetive 1, qualificando o trabalho de escrita do amigo como quem “ama a arte pela arte”. Ele completa afirmando “seu erro foi tentar dar cor e vida a cada uma de suas descrições, em vez de se limitar a expor os raciocínios rigorosos de causa e efeito, que são na realidade os únicos verdadeiramente dignos de menção” (idem).
Como questionar a construção das paisagens, dos clientes, dos figurinos, do passar das horas? Se é todo esse cenário que leva-nos a mergulhar em Londres do final do século XIX? Considerei quase uma afronta, uma vez que aprendi a ser fã daquele que chamo de detetive 2. Holmes alivia reconhecendo que:

(...) não se pode acusá-lo de sensacionalismo, pois entre os casos pelos quais teve a bondade de interessar-se há boa proporção que não trata de crime algum, no sentido legal da palavra. O pequeno caso no qual tentei ser útil ao rei da Boêmia, a aventura curiosa de Srta. Mary Sutherland, o problema relativo ao homem do lábio torcido e o incidente do solteirão nobre eram todos assuntos que escapavam ao alcance da lei. Mas, para evitar o sensacional, receio que chegou bem próximo ao trivial. (HOLMES, 259)

Trivial. Assim ele finaliza. Ao considerarmos que temos no Dicionário Houaiss as acepções para “trivial” como: 1. que é do conhecimento de todos; corriqueiro, vulgar; 1.1 que é muito usado, repetido, batido; 2 que não revela maiores qualidades; ordinário; (2009)
Como considerar triviais os relatos de Watson? A resposta para essa classificação está no nível de exigência de Holmes. Sua inteligência supera todo e qualquer relato. Mas por fim, o que sempre senti nessa relação original é o respeito que Holmes dispensa a Watson: “De jeito nenhum, doutor. Fique em seu lugar. Sem o meu Boswell sou um homem perdido” (HOLMES, pág. 26).
Fica nítido, portanto, ao compará-lo com o advogado e escritor escocês, o quanto o detetive 1 queria o tempo todo a presença de Watson como o seu detetive 2, para o desenrolar dos casos. E a relação funciona muito bem porque o médico não demonstra ambição alguma de ser mais que o amigo, sempre venera suas conclusões, mesmo que depois de um leve questionamento incrédulo, dada as inimagináveis soluções.

Os contos
Fica difícil estabelecer predileção, mas começando pelo último deles, logo em seguida dessa conversa literária, eles têm a visita da última mulher dessas aventuras, onde para mim temos uma das mais fantásticas histórias do livro. Trama essa que não poderia deixar de estar numa obra deste gabarito à luz de todo o cabedal de possibilidades de descobertas que (não) sabemos ser possível.
Você é tentado a perceber que a dupla ganhava muito dinheiro investigando, haja vista as infinidades de fantasias de Holmes, os poucos clientes do médico, os criados que lhes abrem a porta aos clientes e servem as refeições, as viagens longínquas sem qualquer preocupação financeira. Também parece que nunca falta dinheiro a solucionar qualquer caso, pode-se gastar de fonte infinita.
Posso, portanto, afirmar que “As Faias Cor de Cobre” é um de meus prediletos; acompanhado de “As cinco sementes de laranja”; “O mistério no Vale Boscombe” e “O polegar do engenheiro”. Sim, sem sombra de dúvidas, são os meus prediletos.
Num segundo momento, farei a crítica literária de cada um deles, já que o fogo desta lareira está se apagando e agora preciso dormir, ante a porta por hora fechada do escritório em Baker Street.





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