Daiana Pasquim
Pato Branco (PR), 28 de setembro de 2009
Poeira de 50 anos. Escada sem corrimão. Imagens antigas de santos de madeira. Muita adrenalina e medo e uma máquina fotográfica em mãos. Nunca antes em minha vida tinha sonhado subir na torre da igreja, quanto menos no forro, ficando bem próxima do telhado, mas meu envolvimento com as publicações que tenho escrito sobre a reforma da Igreja Matriz São Pedro repercutiram de tal forma que não seria prudente de minha parte deixar de conhecer de perto o motivo de que tanto estava falando.
A decisão de subir veio de repente. Sem pensar muito. Fui até a igreja na manhã daquela segunda-feira (28/09) com o objetivo de fazer a matéria do alagamento causado pela tempestade do domingo, o que reiteraria a necessidade de intervenções no telhado da igreja. No meio da entrevista, a deixa: se você subisse lá veria as reais condições... Pronto. Quando desliguei o gravador perguntei: você disse, subir lá, o que acha? Podemos? É muito difícil? Minha pergunta foi recebida com incredulidade. Está certo. Eu também sempre achei que isso fosse tarefa pra homem. Naquele momento também pensei em minha camisa alva que havia vestido há pouco mais de uma hora. Estremeci e pensei, o que eu vou fazer? Tenho um filho pra criar, e seu eu cair de lá? Mas por outro lado, a realidade chamava: daqui a uma semana a reforma começa e daí, adeus tour religioso. Nunca mais poderei. Rapidamente, foram em busca da chave com o zelador da paróquia, o competente e simpático Onécio Venturin, 68, há 24 conhecendo todos os detalhes da matriz.
Essa foi a primeira matéria de grande importância que fiz na vida sem anotar nada em papel, só em minha memória fotográfica. A única exceção foi o nome de meus guias e colaboradores nessa empreitada: o presidente do conselho administrativo da Paróquia São Pedro Apóstolo, Vilson Dallacosta; o membro do conselho administrativo, Paulo Sartor; e o zelador da Paróquia há 24 anos, Onécio Venturin.
Ainda tremo de lembrar. Tive medo, confesso. Mas tudo valeu a pena. Começamos a subir a torre do relógio da igreja e, a cada degrau, dos mais de 200, desvendava um pouco da curiosidade sobre conhecer o coração das badaladas que marcam o passo do centro de Pato Branco. Há poucos minutos havia escutado que a intenção é transformar o acesso ao local mais facilitado e seguro, para que principalmente os estudantes dos cursos de arquitetura e engenharia que temos no município pudessem fazer visitas ao patrimônio mais valoroso que ainda temos construído. A iniciativa realmente vai fazer muitos felizes. Nem todos têm a oportunidade de conviver ou conhecer mais a fundo a obra de um artista sacro, como a do arquiteto Benedito Calixto de Jesus Neto, o mesmo da Basílica de Aparecida (SP).
Uma porta foi aberta, dando acesso a um corredor terminado em cimento bruto e, por ser escuro, parecia bem menor. Lances curtos, sinuosos e o primeiro nível da torre se descortinou para meus olhos. As paredes eram forradas com armários de madeira maciça e guarda-roupas antigos, onde o marrom estava acentuado pela poeira. Cobertos pelas marcas do tempo estavam surpreendentemente alguns santos de madeira, quem sabe já não tão úteis. Imagem impressionante a ponto de eu não reconhecer se era São Pedro, São João, São Francisco tenho certeza que tinha. Bem no meio da sala, um recorte no chão coberto por um tablado de madeira. Perguntei: o que é isso? “Faz parte da estrutura do relógio”, explicaram.
Também vi duas raridades: quadros de 1,5m por 1m, com traços já bem apagados, representavam os desenhos originais, projetados por um escritório de Curitiba, das duas outras propostas arquitetônicas apresentadas para nossa igreja na época. Não sei se por paixão já, mas a que mais gosto é a edificada até hoje com a dedicação dos pioneiros do final da década de 1950 e do começo de 1960. De estilo neo-basilical, a Matriz São Pedro de fato lembra muito a Basílica de Aparecida. Já fiquei longos minutos contemplando as duas fotos. Busquei o melhor ângulo, evitando as réstias das janelinhas da torre e fotografei os quadros. O posicionamento ideal implicou pisar no tablado de madeira do relógio. Tudo certo. Paulo também fotografou e logo os quadros foram virados novamente de frente para os armários numa tentativa de preservar melhor os traços na batalha contra o tempo. “Deveriam estar guardados em outro lugar”, reconheceram. Eu sugiro uma exposição nas paredes da Casa Canônica.
Para chegar ao segundo nível da torre tive que segurar a respiração. Foi preciso subir estreitos degraus de madeira, num trecho sem corrimão. Ai ai ai. Segurei na parede e não mexi mais nada além do dobrar de joelhos e pés. Chegamos ao local da máquina do relógio. Outra espécie de armário ou caixa de madeira fechada à chave guarda as centenas de engrenagens que, simetricamente, ditam o tempo pato-branquense. Fiz uma série de perguntas: Quem faz a manutenção do relógio quando estraga? Ele é só mecânico ou tocado a energia também? São três pêndulos? “O frei Nelson Rabelo que vem consertar. Ele tem um gerador que é acionado para puxar os pêndulos quando bate uma hora. Tem três pêndulos”, explicou o zelador Onécio.
Mais um lance e vimos a imensa estrutura de madeira, disposta na horizontal, com fios à direita e esquerda ponteados por dois redondos relógios pequenos. Mais um lance de escadas e chegamos a continuação da engenhoca, uma espécie de andaime do sino - numa sala também molhada pela chuva – ostentado na parte mais alta. É dali que saem os sons. Apontaram-me os martelos de ferro provocador das badaladas e contaram como funciona o sino. Um leve balançar e um dlom... só pra me mostrar, saiu fora do compasso do intervalo religioso de 15 em 15 minutos. Que orgulho! Obrigada. Tentei fazer as melhores fotos possíveis, mas a estrutura era grande demais para caber, de uma só vez, na lente da teleobjetiva. Se fosse uma grande-angular... pensei. Há também o alto falante, que reproduz o som na cidade.
Voltamos dois lances de escadas. Tive que pedir o ombro e uma descida lenta ao sr. Onécio, não para respeitar seus cabelos brancos, mas sim o meu temor em conseguir ter forças de descer a escada estreita de madeira sem corrimão. Ouvi umas três vezes: “se você travou para descer a escada não vai conseguir ir até o telhado”. Ai, mexeu com os brios. Vinha com promessa: “será uma aventura”. E eu estava bem motivada. Dallacosta mostrou o percurso e eu não quis acreditar. As pernas bambearam mais. Um travessa de madeira, uns 70cm, ligando a mureta da escada a uma janelinha que dava acesso ao forro. Olhei para baixo e vi todos os lances que ficavam em baixo. “Não vou conseguir”, bradei. Fui retrucada com uma série de incentivos. “A gente te ajuda. Eu seguro a máquina para você entrar. Põe o pé aqui, se apóia, escorrega aqui e pronto, é fácil. Você verá todo o telhado e o forro”. Minha razão dizia não, por isso não me permiti pensar. Fui logo levantando o pé em direção a mureta e quando vi, estava sentada no tablado. Agora, melhor que voltar atrás, só me restava escorregar. Uma abertura do lado direito dava acesso ao ar livre, bem mais próximo do céu. Vi todo o telhado de um ângulo único. Sugeriram até que poderia subir ali para fotografar. Não me encorajei para tanto. “Põe o pé aqui. Ande por essas tábuas”, orientou Dallacosta. Disparei a fazer fotos. A pouca luz, em si, era um convite para soltar o flash e poder, no visor de 3 polegadas, visualizar os detalhes que a olho nu ficavam distantes ou perigosos demais para acessar.
Nessa hora passou um filme pela cabeça, trazendo flashes da proposta de reforma, e não restauração. A proposta do Conselho Administrativo da Paróquia é trocar o telhado atual de peças de barro em função do peso, por folhas de aço zincado. Além de já não mais possuírem o assentamento correto por terem perdido as garras, cada metro quadrado de telhas pesa 65kg. A nave do telhado mede 1.800 m2, o que soma um total de 117 mil kg sobre a cabeça dos fiéis.
O cenário compensa. Estava na região em cima do altar. Entre o forro e o telhado. Fiz uma foto histórica, tenho certeza. As telhas de barro, perfeitamente irmãs, seguradas por madeira seleta, preparada pelos pioneiros. São essas as vigas serradas por José Viganó e família, que já havia apresentado em matéria há alguns dias, acompanhada da foto possivelmente feita em 1963. Um pinheiro para cada viga. Estiquei os olhos, mas não localizei propriamente imperfeições nas tesouras de madeira.
Revelar nesse conto a visão introspectiva e feminina do que vem a ser um “passeio” na torre da igreja em 2009 me causou emoção. Sim porque, no próximo ano, em abril, quando a reforma que começa dia 5 de outubro ficar pronta, o cenário será outro. Com troca completa nas instalações elétricas que hoje botam medo e a melhoria de acesso, o telhado da igreja pode sim se tornar um ponto turístico ou de estudo. Encarei com a postura de uma historiadora desvendando os mistérios da torre, atestando meu papel como jornalista em poder levar para a sociedade uma centelha de sensações daqueles caminhos de acesso restrito.
No fundo, os “mistérios” são mais uma construção interna de minhas expectativas íntimas do que propriamente do espaço que visitei. A ligação está na condição sublime que conhecer o “esqueleto” da casa de Deus. O templo onde as pessoas vão buscar forças e levar suas angústias, procurar conforto e o eixo sublime que as possa conduzir nas provações da vida. Aquele local onde meu olhar e pensamento já ficaram imersos por longos minutos olhando para o mosaico, em todas as fases de construção até ficar totalmente pronto. “Como é alto! sublime”. De repente, me vi em pé acima dele. Desci e tremi o restante do dia.
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