Daiana Pasquim[i]
Há certas ocasiões em que é preciso dar um basta. Isso acontece com pessoas, com situações, com países. A história de Portugal e a sua literatura passaram por isso. O objetivo desse ensaio é buscar identificar manifestações onde o basta se tornou ponto de saliência para a construção (tentativa de) de uma nação. Para tanto, tomemos como exemplo os poemas de Almada Negreiros Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX e também o poema Ultimatum de Álvaro de Campos. Este, procura dar um basta a todas as interferências externas impostas ao país, negando a Inglaterra, a França, a Itália, Áustria, Bélgica, Alemanha, Rússia, Espanha e também os Estados Unidos, como qualquer outra nação que pudesse impor interferências ao desenvolvimento original português; e àquele, dá um choque de realidade na própria nação portuguesa, dando um ultimatum às gerações do futuro, para que trilhem formas de construir uma nova geração. Ao discorrermos sobre isso, procuraremos concluir como esses dois poemas contribuíram para a construção da nação portuguesa, sua contemporaneidade e receita que pode ser aplicada a qualquer país.
O vocábulo “fora” é utilizado em abundancia por Alvaro de Campos. Torna-se, portanto, interessante refletir um pouco sobre esse heterônimo de Fernando Pessoa, uma vez que essa estratégia literária, segundo Massaud Moisés, é uma forma de conhecer a complexidade do real, impossível para uma única pessoa. “O poeta não poderia, obviamente, multiplicar-se em número igual aos seres viventes nas três dimensões temporais. Em vista disso, multiplica-se em heterônimos- símbolos, como se lhe fosse possível chegar a cosmovisões arquetípicas” (p. 334)
Ao lado de Álvaro de Campos, Pessoa cria ainda Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Tomemos o que Massaud diz de Campos:
Álvaro de Campos é o poeta moderno, século XX, engenheiro de profissão, que do desespero extrai a própria razão de ser e não escapa da sua condiçãpo de home sujeito à máquina e à cegueira dos semelhantes,tudo transfundido numa revolta a um só tempo atual e permanente, própria dos contestadores: “Na véspera de não partir nunca/ Ao menos não há de arrumar malas/ Nem que fazer planos de papel” (2008: 335)
Assim, a construção da geração orfista, passa, necessariamente, pelo “Mandado de despejo aos mandarins da Europa! Campos então usa cada parágrafo para dar um basta a um estrangeiro. Primeiro a França, negando sua medicação, seus cosméticos, sua salada, sua louça; depois nega a vestimenta, a forma de comercializar; dá um basta à Itália e aos mandamentos da lei da igreja; dá um basta à Inglaterra, classificando-o como “tramp-steamer da baixa imoralidade”; e também aos Britânicos e Austríacos, Irish-Melody calvinista com letra da Origem-das-Espécies; e à Alemanha, com o barril de cerveja ao pé do altar; e por aí continua, esclarecendo que aqueles que não foram citados, sintam-se também enxotados: “E se houver outros que faltem, procurem-nos por aí pra um canto!” Impressiona que todo o poema mantém ao lado uma tradução em espanhol, tendo em vista a ligação profunda que Portugal mantinha com Espanha, nesse processo desbravador de navegação.
Campos critica a sociedade, sua convivência entre países e seus governos. O poeta avisa que “senão querem sair, fiquem e lavem-se” demonstrando a indignação pelo ilegal, pelo incorreto, que em sua visão só afundam o país, causando falência. Ele constrói o “desfile das nações para o meu Desprezo!” assim, escrito com letra maiúscula, para clarear sua sensação de ojeriza ao estrangeiro.
Mas Campos também não poupa as atitudes de Portugal, principalmente em relação a escravidão africana:
E tu, Portugal-centavos, resto da Monarquia a apodrecer República, extrema-unção-enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com vergonhas naturais em África!
A partir desse trecho do poema, a também o Brasil é citado como um intruso “que nem te queria descobrir”. Para Campos, a filosofia, a arte, a literatura, a crítica, a política, a religião, a guerra, tudo está impregnado do estrangeirismo que só corrompe seu país.
O Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX, por sua vez, é mais severo com seus contemporâneos. Publicado em 1917, oito anos após a implantação da República, veio como um documento para mexer com a autoestima do povo português, demonstrando que os alicerces do futuro são construídos no passado e que estava faltando concretude para Portugal.
De Lisboa, Almada Negreiros procura logo classificar-se como um membro da geração construtivista, e não revolucionária. Deixa claro que ama sua pátria e que é bem resolvido em sua condição social “tenho a idolatria da minha profissão e peso-a”; que é jovem (22 anos) e goza de suas plenas faculdades mentais[ii]
No auge de seu vigor juvenil, desbrava suas opiniões sem medo, dando-se o direito de “exigir uma pátria que me mereça”. Com altivez, mas não arrogância, Negreiros demonstra que a tentativa democrática tem comprometido seu país todos os dias. Ele roga aos jovens como ele a criarem a pátria portuguesa do século XX.
Ele inicia, então, uma contemplação às benesses da guerra, já que é nela “que se acordam as qualidades e que os privilégios se ultrapassam”. Ou seja, é lutando que se pode conseguir melhorar a condição portuguesa e, sua opinião, é que os jovens se joguem de cabeça nessa proposta:
Dispensai os velhos que vos aconselham para o vosso bem e atirai-vos independentes pra sublime vitalidade da vida. Criai a vossa experiência e sereis os maiores. (p.3)
Nesse sentido, Negreiros defende a intensidade, pois “tudo o que não for explosão não existe”. Raciocinando sobre a guerra, enxerga esse caminho intelectual para destruir o passado, os convencionalismos e diplomacia para erguer um novo cenário. Deixa, assim, uma mensagem sublime de que a guerra é a grande experiência:
Contra o que toda a gente pensa a guerra é a melhor das selecções porque os mortos são suprimidos plo destino, aqueles a quem a sorte não elegeu, enquanto que os que voltam têm a grandeza dos vencedores e a contemplação da sorte que é a maior das forças e o mais belo dos optimismos. Voltar da guerra, ainda que a própria pátria seja vencida, é a Grande Vitória que há-se salvar a Humanidade. (p.4)
Negreiros procura enxergar o que há de melhor na condição atual de Portugal, independente de neste momento ser o país perdedor da história, o que importa é enxergar dali pra diante, com os que restaram, o que pode ser feito para construir um novo futuro, já que a guerra “acaba com todo o sentimento da saudade para com os mortos fazendo em troca o elogio dos vivos e condecorando-lhes a Sorte”. O jovem é muito feliz em olhar o que ainda têm de bom, de genuíno, para partir dali uma nova construção.
Em seguida, passa e enumerar no documento, dez razões para configurar Portugal como um país de fracos e decadente: 1.A indiferença; 2.a política de partidos em detrimento da expressão da pátria; 3.na poesia inspirada na história e não nas expressões do heroísmo moderno; 4.o sentimento de saudade; 5.a falta de ódios e, portanto, de fé para lutar por seu próprio país; 6.a educação familiar sem nenhum princípio de fé; 7.a desnacionalização, faltando dar valor a verdadeira língua portuguesa, ao sentimento de pátria, e ao que é fabricado e criado em Portugal, tendo a importação como um rótulo da vitória; 8.porque Portugal é um país de amadores, com uma literatura feita para agradar e não para denunciar, o que provoca miséria moral; 9.porque desde o século passado, de Camões, esqueceu-se o que significa Pátria no âmbito comercial, industrial e artístico; e 10.pela passividade ao imposto do exterior, o que tem ‘apodrecido’ Portugal. Nesse ponto, Negreiros aponta a saída, afirmando ser preciso criar adoração dos músculos, espírito de aventura, aptidões pró heroísmo moderno e cotidiano, destruir o sebastianismo que se arrasta e todo o espírito pessimista que vem das antigas civilizações, que as mulheres portuguesas eduquem seus filhos como homens, que os Europeus assim se sintam, que lembrem estar no século XX, é preciso explicar ao povo o que é democracia, violentar todo sentimento de igualdade, ter consciência da atualidade.
Repetindo três vezes que “é preciso criar a pátria portuguesa do século XX”, sendo originais: homens e mulheres de fato, de sua época. Negreiros conclui que, se somos portugueses e não temos culpa por isso, vamos dar o melhor de nós para melhorar essa condição. E fecha com chave de ouro com um toque de realidade e humor: “o povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, /portugueses, só vos faltam as qualidades.”
Após a leitura e análise dos poemas de Almada Negreiros e Álvaro de Campos, cujo tema é o Ultimatum, conclui-se que a literatura e o campo das artes exercem papel fundamental de reflexão para a mudança de qualquer sociedade. Negreiros mostra-se ousado, seguro de si e foi feliz ao escolher o tema guerra para ilustrar a mudança que quer enxergar na sociedade. Ele mexe com os brios e o ego portugueses, utilizando a indignação para convertê-la em ação. Campos mais parece um cavaleiro com um imenso escudo rebatendo tudo que é lançado de fora para seu pequeno país. Juntos, criam um ambiente favorável à nação, mostrando os caminhos pelos quais Portugal pode melhorar sua condição no contexto mundial. Os dois ultimatum descrevem o diagnóstico da doença portuguesa, entregando de bandeja o antídoto para o que eles entendem como veneno: o entreguismo, tanto ao estrangeiro, quanto a si próprios. Vale lembrar que a condição social e política do país é desfavorável perante a história de outros europeus e que posteriormente a esses dois manifestos, viveu o governo ditatorial de Salazar por 46 anos, de 1928 a 1974, o que deu ao país uma nova condição de pressão social. Contudo, a produção literária de Campos e Negreiros demonstram uma contemporaneidade impressionante, já que a ideologia expressa no ultimatum e a condição social descrita ainda se assemelha muito a vivida pela sociedade do século XXI. Seus conselhos valem até hoje, seus diagnósticos são reais, existe invasão sem limites de tudo que é estrangeiro e dão a isso o bonito nome de globalização. Faltam gerações aguerridas que transmitam ao público sua vontade de construir novos rumos a um país. Para além de Portugal, o Brasil viveu ainda mais dez anos de Ditadura, até 1984, o que é decisivo para construir esse aspecto brasileiro. O consolo vem da comparação histórica: Portugal é um país europeu, o continente mais civilizado do mundo e o Brasil foi descoberto em 1.500 apenas.
Referências
MOISES, Massaud. A literatura portuguesa. 35 Edição Revista e Atualizada. São Paulo, Cultrix:2008.
CAMPOS, Álvaro de. Ultimatum. Obtido em acessado em 29/3/2010.
NEGREIROS, José Almada de. Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX. Lisboa: 1917.
[i] Jornalista formada em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Fadep (Faculdade de Pato Branco) em 2004; especialista em Planejamento e Gestão de Negócios pela FAE Business School; e acadêmica de Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela UFSC (Universidade Aberta de Santa Catarina) pela UAB (Universidade Aberta do Brasil) no pólo Pato Branco.
[ii] “Eu tenho vinte e dois anos fortes de saúde e de inteligência”.
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