segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Marxismo em “O Cortiço”


Daiana Pasquim[i]

A perspectiva marxista de leitura, na sociedade atual, é quase sempre possível de ser feita em qualquer obra literária. Difícil desvincular as relações sociais do dinheiro, mesmo que seja para dizer – raramente – que tais personagens não se importam com os recursos financeiros – ou se importam por demais. Foi esse o viés de argumentação seguido pelo crítico Afonso Romano de Sant’Ana na análise estrutural que faz de “o Cortiço” de Aluísio Azevedo. Como um crítico impiedoso da sociedade brasileira, Azevedo traça, na visão de Sant’Ana, dois parâmetros: o naturalista e o cultural, aonde Romão está para o instintivo e natural e Miranda para o mais requintado e cultural.
Como o capitalismo permeia tudo atualmente e essa foi a primeira obra naturalista do Brasil, criada por Azevedo sob influencia de Eça de Queirós e Émile Zola, retrata a realidade cotidiana que promove o enriquecimento ilícito e meteórico do vendeiro João Romão. A custa de explorar pessoas – a começar pela negra Bertoleza, com quem se casa por interesse – e de furtar o alheio, ele enriquece e de uma taverna, faz uma avenida ao final do enredo.
Conceituando o Marxismo, segundo o dicionário Houaiss, temos:

1. conjunto de concepções elaboradas por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) que, baseadas na economia política inglesa do início do sXIX, na filosofia idealista alemã (esp. Hegel) e na tradição do pensamento socialista inglês e francês (esp. o chamado socialismo utópico), influenciaram profundamente a filosofia e as ciências humanas da Modernidade, além de servir de doutrina ideológica para os países socialistas. 2. reunião dos movimentos de natureza política, econômica, social, cultural etc., fundamentados nessas concepções. (HOUAISS, 2009)

Na estrutura de sua análise, Sant”Ana perpassa a identificação de dois conjuntos no enredo de Azevedo: o simples, encabeçado por Romão; e o complexo, por Miranda. Em seguida ele discorre detalhadamente sobre o organograma de cada um desses conjuntos, exemplificando como se dá a lógica da obra com vistas ao ideal de enriquecimento. Parece que o que muda de um para o outro são apenas os meios, porque os fins são os mesmos para ambos: negócios, dinheiro, poder, enriquecimento.
Sant’Ana dedica uma parte de sua  análise ao sistema de trocas e vantagens conseguidas de um sistema para o outro. Resume aqui bem quase todos os fios de histórias dos livros. Os personagens são movidos a interesses, de um lado a outro, natureza própria do dinheiro, que costuma cegar suas vítimas em prol do poder e do (falso) reconhecimento social. Ter seu nome batizando uma avenida parece o ápice para Romão, mesmo que em sua história haja culpa sobre a morte de uma mulher, a sua própria Bertoleza.
Essa automutilação cometida pela mulher também remete à ignorância das classes menos abastadas. Aliás, Sant’Ana explicita que no conjunto simples do qual fazem parte João Romão, Bertoleza e seus afins, tudo se resolve na base da violência.
O sangue frio para os negócios parece primordial, a começar pelos casamentos de interesses. Sant’Ana chama isso de “função da mulher no sistema de transformações”.
Mas que vida vazia se constrói na narrativa. Tomemos um exemplo do próprio Miranda, nas partes iniciais da narrativa:
Faltando-lhe temperamento próprio para os vícios fortes que enchem a vida de um homem; sem família a quem amar e sem imaginação para poder gozar com as prostitutas, o náufrago agarrou-se àquela tábua como um agonizante, consciente da morte, que se apega à esperança de uma vida futura. (AZEVEDO, pgs. 29 e 30)

Por fim, Sant’Ana discorre sobre a reduplicação dos modelos de evolução e entropia. A entropia está para a desordem do sistema. Mesmo com todas as batalhas, os personagens não vivem em paz. Não há serenidade, nem vitórias reais. Só morte e violência, e dor e sabotagem. Se pegarmos a função mera e simples de um cortiço, antes de tudo é a de ser um lar para ser dignidade ao ser humano, na obra de Azevedo temos só o lado extremamente racional do homem, as finanças, que chegam a ficar irracionais pelo trato fino dos personagens entre si, xingando-se com nomes de animais como forma de maltrato e humilhação. É um realismo puro, ambientado no começo do século XX, aonde as relações sociais declaráveis eram estritamente negócios. Os desejos reais ficavam para o segredo das alcovas, os cochichos dos vizinhos e o deleite de figuras como Estela.
Se casarmos essa leitura com a sociedade atual, veremos que hoje as pessoas constroem seus lares imagináveis, nem sempre palpáveis e se relacionam em grande medida pelas redes sociais on line, trocando uma superabundância de mensagens que refletem, na maioria das vezes, uma imagem que se faz de um todo. A máscara que se quer vender para a coletividade. Mas justamente por isso talvez hoje seja tão latente essa fome de alma, de personagens como Rosálio e Irene, do vôo da guará vermelha de Maria Valéria Rezende (Objetiva, 2005).
Romance real contemporâneo, ambientado numa grande cidade, mas que transporta o leitor para um mundo a parte construído pelos personagens a partir das narrativas históricas que fazem:
Um homem e uma mulher são o centro da narrativa. A economia textual fica restrita a um quarto e uma cama, um colchão deformado, lápis e papel e, paradoxalmente, livros como a bagagem do homem analfabeto. (RAMOS & CORSO, 2011)
Isto posto, destacamos aí duas sensíveis diferenças narrativas de duas obras encaixadas como “realistas” em séculos diferentes. O vôo da guará vermelha também pode ser entendido com uma leitura marxista, aonde uma prostituta e um pedreiro, feitos de osso e carne, unem as suas sobras gastas para reconfortar a alma. A grande diferença é que da pobreza de um e de outro, temos personagens com objetivos diferentes. Ao fim de seu ensaio, o próprio Sant’Ana reconhece que se o objetivo fosse analisar a miscigenação lingüística provocada naquela realidade do cortiço, com negros, europeus e mestiços, a análise seria outra. Portanto, a grande conclusão que se tira é que, mesmo em ambientes aparentemente semelhantes, é a análise que deve dispensar o real carinho que cada obra merece.

Referências

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 2ª Ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.

FRITZEN, Celdon & CABRAL, Gladir da Silva. Estudos da Teoria Literária II. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2011.

HOUAISS, Antonio. Dicionário Eletrônico de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

REZENDE, Maria Valéria. O vôo da Guará vermelha. Coleção Fora dos Eixos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

RAMOS, Tânia Regina Oliveira & CORSO, Gizelle Kaminski. Estudos Literários IV. LLV/CCE/UFSC, 2011.



[i] Daiana Patricia Follman Pasquim é jornalista e acadêmica da 8ª fase do curso de Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na modalidade Educação a Distância (EAD) no Polo de Pato Branco (PR). É pós-graduada em planejamento e gestão de negócios pela FAE Business School e cursa ainda a especialização em Mídias na Educação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (Unicentro), campus de Guaraniaçu (PR). daipasquim@hotmail.com

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